Texto de José Roberto Guzzo, jornalista, editorialista de Veja e Exame. Publicado em Veja de 29mai2013, com o título original de Zero mais Zero
Muito apropriada a leitura para dias de hoje
Consta que Galeno, o maior médico da Roma antiga, chegou
certa vez a uma cidade atingida pela peste, onde foi recebido com grandes esperanças pelos
notáveis locais. Que sorte a nossa, pensaram todos – justo nesta hora, eis que
nos aparece o grande Galeno, o homem que mais conhece o corpo humano em todo o
império e consegue curar as doenças mais infames em circulação por aí. Galeno
olhou um pouco à sua volta, pensou por um minuto e deu sua receita para o
tratamento da peste: “Vão embora daqui o mais rápido que puderem. Vão para o
lugar mais longe possível. Voltem o mais tarde que conseguirem”. Houve um certo
desapontamento: mas é só isso que o nosso grande doutor tem para dizer? Sim,
era só isso, e Galeno foi o primeiro a aplicar a sua própria terapia: montou no
cavalo, saiu a galope e nem olhou para trás. Não há informações mais precisas
nessa história, mas uma coisa é certa: ninguém que optou por obedecer à sua
prescrição morreu. E não era isso, exatamente, o que esperavam dele?
O episódio permanece, no anedotário da história, como uma
prova de que é perfeitamente possível aproveitar a própria ignorância para
obter um benefício importante – importantíssimo, na verdade, para os que
salvaram a sua vida seguindo a recomendação recebida. Galeno não tinha a mais
remota ideia de como curar a peste, algo que só seria descoberto uns 1600 anos
depois, mais ou menos. Mas sabia algumas coisas interessantes. Sabia, por
exemplo, que a doença aparecia numas cidades e não em outras, que permaneciam
totalmente imunes à epidemia. Por quê? Pergunta inútil, raciocinava ele, já que
não havia tempo de ficar fazendo pesquisas científicas quando centenas de
pessoas morriam todos os dias nas cidades atingidas pela peste. Sabia, também,
que um indivíduo ainda não contaminado permanecia plenamente saudável quando se
mudava para algum lugar livre da praga. Não se importava nem um pouco, enfim,
em admitir sua ignorância no assunto, ao contrário de seus colegas, que ficavam
receitando remédios absurdos, rezas e mandingas para esconder o fato de que não
sabiam nada sobre o tratamento da doença, preferia salvar pela observação
lógica aqueles que ainda não estavam condenados.
Galeno, na escuridão do século II, não sabia muita coisa.
Era capaz, entre outras proezas, de desmontar um macaco inteiro numa autópsia
e, em seguida, colocar cada peça de volta exatamente no lugar em que estava.
Mas dizia que isso lhe ensinava muito sobre macacos, e pouco sobre o homem.
Achava, por exemplo, que o sangue se originava no fígado, e
tinha dúvidas sobre a disposição dos músculos no corpo humano, hoje,
provavelmente, não o deixariam clinicar num posto de saúde do interior do
Ceará.
Mas Galeno era um ás em servir-se da sua inteligência para
vencer a sua ignorância. Ao recusar-se a ficar inventando falsas respostas para
questões que desconhecia, e por limitar-se a aplicar ao paciente o que de fato
sabia, forçava a si próprio a aprender mais, e a aprender com mais certeza. O
resultado é que acabou se tornando um farol para a medicina por mais de 1000
anos após a sua morte.
Em muita coisa, no Brasil de hoje, vivemos um momento oposto
ao do mundo mental de Galeno – a ignorância serve para derrotar a inteligência.
Grandes vultos do nosso mundo cultural, político, social e outros abarrotam
seus sites com cursos, mestrados, pós-graduações e outros feitos d´armas que
atribuem a si próprios; infelizmente, não informam o que aprenderam. Sem isso,
o que se tem é zero mais zero. No papel o sujeito é um crânio, e se comporta
com aquela arrogância que só a falta de mérito pode comprar – mas, na hora de
mostrar o que realmente sabe, apresenta um diploma em vez de uma resposta. Em outros
casos, vai-se na direção oposta: a ignorância é promovida a virtude, e a falta
de estudo vira um certificado de sucesso na vida. Gente desse tipo é convidada
a dar aulas ao mundo, aceitar tarefas incompatíveis com os seus conhecimentos e
até a receber títulos de doutor honoris causa, aqueles que exigem um chapéu
estranho que fica sempre torto na cabeça do homenageado. Um cidadão de mínimo
bom senso, em tal situação, diria: “Muito obrigado, mas não posso aceitar,
porque não entendo nada deste assunto. Não há causa para a honoris”.
Mas quem faria isso? O título, os aplausos de plateias tidas
como sofisticadas e a canonização do ignorante valem mais que o mérito. Quanto
menos o indivíduo sabe, tanto menos quer saber. Por que haveria de querer? Não
se mexe com ignorância que está ganhando.
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