Novo Hamburgo, RS - Almocei com Aurélio Decker. Jornalista, escritor, observador
astuto do cotidiano, crítico de costumes e atento fiscalizador das autoridades.
Conversa boa, papo que relembrou passagens quem que foi meu chefe no Jornal NH
e na Folha de Novo Hamburgo. Lelo está ótimo na casa dos seus 60 e poucos anos.
Na saída do almoço, uma rápida caminhada pelo Centro de Novo Hamburgo. No trajeto, uma
parada para conversar com dois camelôs senegaleses. Uma conversa que misturou
francês e inglês, mas que deu para entender. E o que chamou a atenção... os
dois refugiados adoraram conversar. Lelo sempre exercitando sua verve
reportera.
De modo geral, é difícil escrever sobre alguém que escreve
muito bem há tanto tempo. E escreve muito, mas muito melhor. Apesar dessa
ligeira dificuldade, vamos adiante. O Lelo foi e continua sendo fantástico como
repórter. Há pouco menos de um mês, antes do friozão que tomou conta do Rio
Grande, ele passou algumas noites nas ruas de Novo Hamburgo. Dormiu e
perambulou nas ruas de Novo Hamburgo como morador de rua. Isso mesmo. O velho
repórter, que começou sua carreira ainda no finalzinho dos anos 1960, disfarçou-se
de sem-teto e passou a dormir debaixo de marquises do centro do comércio
hamburguense.
Na sua empreitada de repórter que não fica naquela do
jornalismo “declaratório”, onde o repórter ouve um lado e, eventualmente, o
outro lado, Lelo conversou com outros sem-teto, pediu um café com leite na
madrugada nas bancas e ainda chegou a ser atendido no Posto de Saúde do Centro
da cidade. Tudo como morador de rua. O resultado foram textos primorosos no
espaço que detém há anos no Jornal NH, na Rádio ABC e em sua conta no Facebook.
Uma aula de jornalismo para o pessoal de hoje em dia que trabalha em
comunicação.
Lelo é uma grife no jornalismo. Tem muita gente que não
gosta de suas opiniões ácidas e de seu jeito de falar as coisas na cara,
beirando a hipersinceridade, às vezes. Ele fala as coisas na “lata” para o
interlocutor. Nas suas crônicas, sempre defendeu o interesse da cidade de Novo
Hamburgo. Sempre muito crítico com quem enfeitava muito as realidades, especialmente
se houvesse dinheiro do contribuinte envolvido. Sempre cobrou lisura das
autoridades, especialmente as autoridades policiais.
Lá por 1993, já com cargo de diretor no Grupo Editorial
Sinos, resolveu ir para a China para ver como os chineses estavam se preparando
para ser a “fábrica do mundo”. Especialmente na indústria do sapato, que eles
queriam tirar do Brasil a posição competitiva. Lelo foi para a China como
comerciante. Sim, entrou com visto de empresário no país asiático. Ele viu in
loco os operários ganhando 50 dólares por mês, sem direito a férias, sem
direito a previdência e com direito de morar na mesma fábrica onde trabalhavam.
A maioria deles cumpria jornadas de 14 horas por dia.
Lelo voltou ao Brasil e escreveu uma série de reportagens
onde vaticinava que os chineses desmontariam a indústria de calçados no Brasil.
À época, a indústria era baseada majoritariamente no Vale do Sinos.
Foi o que aconteceu. Somente o olhar do repórter que foi até
o local colher as impressões para fazer uma reportagem de tamanho fôlego
permitiu a precisão na previsão. Em 1993, as exportações brasileiras ficaram em
US$ 1,8 bilhão. Vinte e três anos depois,
o faturamento da exportação brasileira de sapatos ficou em US$ 900
milhões. Um pouco mais, um pouco menos. A potência chineses havia aniquilado a
outra pujante economia calçadista do Vale do Sinos.
Lelo voltou à China mais duas vezes, em 1995 e 2007. Das suas viagens ao país asiático brotaram dois livros sobre o assunto: China - Ameaça ou Oportunidade e China, o Dragão Avança.
Toda sexta-feira Lelo brinda os leitores do Jornal NH com
sua crônica semanal. Um espaço de verdade, onde o olhar de lince sobre a
cidade, sua gente e seus problemas são transformados em texto de primoroso
charme e agradável leitura.
Aurélio Decker escreveu em dois livros muito dos dos falares
dos hamburguenses típicos. Aqueles descendentes dos alemães que até boa parte
dos anos 1950 viviam muito fechados para o além do Rio dos Sinos. Coisa das
omas, das hauss musik, do spritzbier... Lembranças dos colonos que fundaram a
cidade e que são a origem do Lelo.
Lelo está a mil. Mora num hotel voltado para terceira idade.
Conceito moderno. Os cabeças-brancas que estão lá são independentes e preferem
morar num quarto onde têm tudo. Em Novo Hamburgo. É lá onde recebe os amigos,
as amigas e os seis filhos de dois casamentos.
Lelo é o cronista do cotidiano de Novo Hamburgo. Há quase
cinquenta anos.
Longa vida a ele.
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